Geopolítica do Brasil e pensamento militar: contribuições do Exército

O Bicentenário da Independência do Brasil, celebrado este ano, nos oferece uma oportunidade única para discutir a trajetória geopolítica do nosso País, considerando-se não só os desafios enfrentados pela Nação ao longo desse período, mas também suas potencialidades e as oportunidades de futuro. Nesse contexto, o presente artigo pretende apresentar um breve panorama da trajetória nacional ao longo desses 200 anos do Brasil independente, considerando a natureza dos desafios impostos e a contribuição intelectual de destacados geopolíticos militares do Exército Brasileiro.

Faz-se necessário, em primeiro lugar, dizer que, como uma área sistematizada do conhecimento, a geopolítica surge nas décadas que antecedem à 1ª Guerra Mundial, notadamente com autores germânicos (Friedrich Ratzel, Rudolf Kjellen) e anglo-saxões (Alfred Mahan e Halford Mackinder). Entretanto, como práticas e instrumentos de controle territorial, a geopolítica é tão antiga quanto a própria humanidade.

Desta forma, pode-se afirmar que mesmo antes da constituição da geopolítica como uma área do conhecimento, seus princípios já eram praticados no Brasil desde o período colonial. Segundo Meira Mattos (2011), a preocupação brasileira com o controle territorial em áreas remotas é herança do modus operandi português de administração colonial. Para o autor, Portugal sempre se preocupou em estabelecer uma estratégia geopolítica para assegurar o seu domínio territorial por meio da instalação de fortes a montante das grandes bacias hidrográficas nas extremidades do território nacional.

Nesse sentido, vários exemplos podem ser apresentados. A postura estratégica de Alexandre de Gusmão, na proposição do Tratado de Madri (1750), tornando de “jure” as conquistas territoriais que os Bandeirantes já haviam conquistado de fato é um deles. Esse modus operandi português será herdado pelo Brasil-Império. Em meados do século XIX, por exemplo, o Brasil passou a adotar a concepção de colônias militares, o que representava uma evolução do antigo conceito de vigilância e proteção militar por meio da construção de fortes e fortins. Meira Mattos (2011, p. 108) lembra que “o Império, em 1840, ao criar as colônias militares, pretendeu estendê-las como processo de fixação da população em determinados pontos da fronteira terrestre desabitada; o forte já não era tão necessário, mas o quartel o substituiria, oferecendo um ponto de apoio social à população adjacente”. Tratava-se de uma estratégia de controle territorial que buscava vivificar a faixa de fronteira por meio do povoamento. Com essa estratégia, o Império buscava “ocupar a sua fronteira mais longínqua mesclando a arma de defesa e a enxada da fixação econômica do homem à terra” (Meira Mattos, 2011, p. 112-113).

Assim, no contexto do Império até a República, passando pela Independência, as ideias de busca da coesão territorial e de identidade nacional farão parte do pensamento geopolítico de autores como José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), Francisco Adolpho Varnhagen (1816-1878) e João Pandiá Calógeras (1870-1934). Tratavam-se de ideias que buscavam dar relevância aos desafios e às oportunidades de uma jovem Nação em processo de desenvolvimento e consolidação territorial. Desafios que se mantêm até hoje, como o déficit estatal em áreas mais remotas que resultam das próprias dimensões colossais do território nacional, dos 40% distam a mais de mil quilômetros do litoral.

Nesse contexto, o Exército Brasileiro teve uma participação fundamental como um instrumento de construção nacional e de manutenção da unidade territorial, sob o ponto de vista de sua organização, garantido sua presença nos mais distantes rincões do País. Por outro lado, contribuiu de forma fundamental para a sistematização do pensamento geopolítico nacional por meio de debates em suas escolas militares e, principalmente, de publicações de sua intelectualidade.

Destacaremos, a seguir, as ideias de três generais que, ao longo do século XX, sistematizaram o pensamento geopolítico, desvelando em seus textos os desafios e potenciais do Brasil: Mário Travassos, Golbery do Couto e Silva e Meira Mattos. Posteriormente, discutiremos, brevemente, a contribuição de cada um deles.

Pode-se afirmar que os fundamentos do pensamento geopolítico brasileiro, da forma como o concebemos hoje, surge em 1931, com a publicação do livro “Características Geográficas da América do Sul”, posteriormente denominado “Projeção Continental do Brasil”, de autoria do então Capitão Mário Travassos (1891-1973). A partir da análise das condicionantes geográficas da América do Sul, Travassos analisa os desafios internos e externos da projeção nacional, considerando o fato de que o continente sul-americano é dominado por dois grandes antagonismos que separam de forma longitudinal o litoral pacífico do atlântico e, de forma transversal, a bacia do Prata da bacia do Amazonas. Nesse contexto, era possível se falar de dois imensos “brasis” mais ou menos excêntricos: o Amazônico e o Platino. Do ponto de vista externo, o Brasil era ameaçado por forças que penetravam do sul (da Argentina, cujas ferrovias já alcançavam o altiplano boliviano) e do norte (dos EUA, cuja incubadora seria o mar do Caribe). Diante desse quadro, para Travassos, “somente sob o domínio da pluralidade dos transportes poderá o Brasil exprimir toda a força de sua imensa projeção coordenadora no cenário da política e economia continental.” (Travassos, 1938, p. 140). É nesse sentido que Travassos irá saudar com o Plano Geral de Viação Nacional lançado pelo Governo Vargas em 1934.

Golbery do Couto e Silva (1911-1987) produz seu pensamento geopolítico especialmente ao longo das décadas de 1950 e 1960 no contexto da Guerra Fria. Do ponto de vista interno, Golbery se depara com os mesmos problemas já apontados por Travassos, oriundos do desafio de coesão e integração nacional. Para tanto, sugere uma “manobra de integração do território nacional” que fosse capaz, por meio de obras de infraestrutura, de conectar os “arquipélagos” do Nordeste, do Sul e do Centro-Oeste ao “Núcleo Central” brasileiro para, em uma fase seguinte, integrar a Amazônia, “inundando de civilização a Hileia”.

Do ponto de vista externo, Golbery busca situar, a partir de uma perspectiva “brasilcêntrica”, a posição do Brasil como potência regional no meio do jogo bipolar. Para ele, “Não haverá geopolítica brasileira, que tal nome mereça, sem que se considere, de fato, o Brasil como centro do universo.” (Couto e Silva, 1981, p. 177). Analisando o contexto do pós-2ª Guerra Mundial, Golbery considerava que o fenômeno da guerra passava por uma espécie de metamorfose. Para ele, “De guerra estritamente militar passou ela, assim a guerra total (…) de guerra total a guerra global; e de guerra global a guerra indivisível e – por que não reconhecê-lo? – permanente.” (Couto e Silva, 1981, p. 24). Nesse novo contexto, são lançadas as bases da Doutrina de Segurança Nacional na qual a ideia de poder nacional, em todas as suas expressões, passava a ser condição sine qua non para a segurança de nação. Assim, considerando-se os objetivos nacionais, não seria possível, por exemplo, pensar em segurança separado da ideia de desenvolvimento. Pode-se resumir suas ideias, do ponto de vista externo, em dois aspectos: de um lado, a opção pelo Ocidente, e, de outro lado, a defesa da autonomia estratégica e da consequente manutenção da liberdade do Brasil considerando o seu potencial geopolítico. É nesse sentido que Golbery ressalta o conselho do “sábio” George Washington: “Deveis ter sempre em vista que é loucura o esperar uma nação favores desinteressados de outra; e que tudo quanto uma nação recebe com favor terá de pagar mais tarde com uma parte de sua independência”. (Couto e Silva, 1981, p. 62.).

A obra de Carlos de Meira Mattos coincide com o projeto de “Brasil-Potência”. Não obstante o reconhecimento dos desafios geopolíticos já apresentados por seus predecessores, Meira Mattos não escondia seu entusiasmo pelo potencial que o Brasil demonstrava possuir. Em sua primeira obra – “Projeção Mundial do Brasil”, publicada em 1959, Meira Mattos sugere que o Brasil já podia almejar uma escalada de poder global. De fato, a dimensão e a riqueza natural do território, somadas à unidade nacional, por si só, representavam insumos consideráveis de poder para o Brasil. Entretanto, apesar disso, o País permanecia carente de infraestrutura de transportes e de comunicações, apresentando áreas pouco povoadas. Assim como seus predecessores, Meira Mattos condicionava a segurança e o desenvolvimento nacional a uma necessária política de interiorização.

Do ponto de vista externo, Meira Mattos testemunha o aumento das preocupações ecológicas e da pressão internacional sobre a Amazônia. Buscando soluções para dirimir
o problema, vislumbra-se a ideia de gestão territorial compartilhada daquela região, na forma de “condomínio” e por meio da cooperação com os países amazônicos, como mecanismo capaz de gerar escala de poder à região e garantir autonomia estratégica aos condôminos. É essa a ideia que está por trás do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), cujas ideias encontram respaldo na obra “Uma Geopolítica Pan-Amazônica”, publicada em 1980.

O TCA, assinado em 1978 pelos países amazônicos, representava uma interessante estratégia de enfrentamento da pressão ambientalista internacional e da suposta tese de internacionalização da Amazônia. A esse respeito, deve-se ressaltar o conceito de “áreas de intercâmbio fronteiriço”, desenvolvido por Meira Mattos, como um instrumento de integração regional. A finalidade seria estimular no entorno das áreas de conexão fronteiriça a criação de polos binacionais de desenvolvimento socioeconômico. A ideia de utilização dos espaços fronteiriços, como elemento de integração, buscava, por meio da cooperação regional com os países vizinhos, incentivar projetos de desenvolvimento regional e de ocupação territorial na Amazônia.

Esse breve sobrevoo sobre a construção do Estado Nacional brasileiro ao longo de seus 200 anos de Independência revela o quanto o pensamento militar do Exército foi importante para fundamentar as grandes linhas do pensamento estratégico nacional.

Além dessa contribuição, ao longo desse período, o Exército tem sido chamado para participar do processo de construção do próprio Estado Nacional, o que envolve, muitas vezes, a atuação da Instituição como instrumento de desenvolvimento e de estabilização. A imagem do Marechal Cândido Rondon lançando cabos telegráficos nos mais distantes rincões da Nação ou de um batalhão de Engenharia construindo estradas de rodagens em regiões menos desenvolvidas constituem ícones do imaginário que ligam o Exército ao processo de construção nacional brasileiro.

A estratégia da presença nacional, por exemplo, continua simbioticamente relacionada ao desenvolvimento nacional e à função de “escola de civismo” em um contexto no qual as ideias de desenvolvimento e segurança parecem indissociáveis. Nesse sentido, merecem destaque as palavras do General de Exército Eduardo Dias da Costa Villas Bôas, Comandante do Exército Brasileiro, durante a Audiência Pública realizada pela Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, no dia 5 de julho de 2017, segundo as quais, ao mesmo tempo em que se busca transformar o Exército, “com capacidade de projeção externa, nós temos que continuar sendo um Exército de colonização. Essa é a realidade” (BRASIL, 2017, n.p.).

Os desafios continuam enormes: da dimensão de nosso País. Entretanto, a capacidade do País é muito maior do que isso. O Brasil é fruto de um projeto geopolítico português que conseguiu, graças ao modo cioso com que aquele país controlava seus territórios, manter um verdadeiro continente territorialmente coeso e nacionalmente unitário. Por seus potenciais, o Brasil está “condenado a dar certo!”. Falta-nos, entretanto, superar nossas vulnerabilidades sociais. Faz-se necessário, e com urgência, o desenvolvimento de uma grande estratégia que, reconhecendo nossas limitações e possibilidades, possa pensar o Brasil e propor um futuro digno à estatura geopolítica que nosso país merece.

Salve o Brasil e seus 200 anos de nação independente!

Fonte: Cel QCO Oscar Medeiros Filho | Blog do Exército Brasileiro

Fotos: Centro de Comunicação Social do Exército

Post Author: Letícia Gama

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