O Brasil das obras inacabadas compromete a saúde da população

Maior complexo de fabricação de vacinas da Fiocruz não sai do papel e já consumiu R$ 1,2 bilhão em 16 anos.

 

Concebido para se tornar a maior e mais moderna fábrica de vacinas e medicamentos da América Latina, o Complexo Industrial de Biotecnologia em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Cibs), em Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio, se resume hoje aos alicerces de 46 prédios, onde deveriam estar sendo produzidos 120 milhões de frascos de imunizantes por ano. Em lugar do centro de excelência, o terreno de 580 mil metros quadrados serve de pasto para cerca de 40 bois e vacas. O projeto, que já consumiu em torno de R$ 1,2 bilhão na obra e na compra de equipamentos que permanecem encaixotados, é marcado por atrasos provocados por burocracia e falta de recursos. A suspeita de pagamentos indevidos é investigada pelo Tribunal de Contas da União (TCU).

 

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Sete relatórios do TCU detalham o andamento do projeto, que começou a ser desenvolvido em 2009. Sem data para retomar as obras, a atual direção da Fiocruz estima que serão necessários quase quatro anos para finalizar a fábrica e colocá-la em operação. Ou seja, na melhor das hipóteses, as vacinas só deverão começar a ser produzidas no fim de 2028, quase 20 anos depois do início dos trabalhos. Para isso, a fundação calcula que serão necessários mais R$ 5,4 bilhões.

 

— Retomado o projeto, teremos dois anos e meio de obras e mais um ano de qualificação dos profissionais, de certificação dos equipamentos e de qualificação dos sistemas. É um processo bastante demorado, e essa indústria é altamente regulada pela Anvisa, que é bastante cuidadosa com isso — explica o presidente da Fiocruz, Mário Moreira.


Após 16 anos e gastos de R$ 1,2 bi, terreno para a maior fábrica de vacinas do país, na Zona Oeste do Rio, ainda é só mato — Foto: Gabriel de Paiva

 

Quando ainda era feita a terraplenagem do terreno, em 2014, a Bio-Manguinhos, unidade responsável pela produção de vacinas da Fiocruz, fez a compra de equipamentos para o complexo. Foram importadas de diferentes países 27 máquinas industriais de grande porte ao custo de R$ 813 milhões — valores atualizados pelo TCU. Sem uso, os equipamentos — feitos sob medida — estão encaixotados desde 2018 num galpão alugado na Baixada Fluminense, e a garantia dos fabricantes já expirou, segundo o TCU. A lista inclui oito liofilizadores (usados para prolongar a vida útil de vacinas), cada um com 63,3 toneladas.

 

Aluguel milionário

 

Entre os itens comprados estão ainda quatro linhas de envase para cumprir a etapa final de produção, com lavadoras, túneis de esterilização e mesas para acomodação de frascos. Sem uso, esse material ainda gera despesa para a Fiocruz. Nos últimos três anos, a fundação autorizou pagamentos que totalizam R$ 14,3 milhões para o aluguel do depósito no bairro Figueira, em Duque de Caxias. Esse dinheiro seria suficiente para produzir cerca de 400 mil doses de vacinas contra a Covid-19.

 

Em 2017, segundo o TCU, a Bio-Manguinhos justificou a compra antecipada dos equipamentos afirmando que esta era considerada uma pré-condição técnica para o desenvolvimento do projeto executivo da obra “porque haveria o risco de uma incompatibilidade física, comprometendo a instalação e a operação do complexo’’. O TCU discordou dos argumentos e multou três funcionários da Bio-Manguinhos em R$ 50 mil cada pela aquisição do maquinário — valores que já foram pagos.

 

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Na semana passada, O GLOBO esteve no depósito em Caxias, que fica numa área residencial controlada pelo tráfico e com barricadas em várias vias no entorno. No pátio, era possível observar contêineres a céu aberto, mas nenhum funcionário deu informações.

 

Infectologista e professor da Uerj, Marcos Lago destaca a importância de investimentos de longo prazo na área da saúde:

 

— Quase 80% das vacinas que o SUS oferece são produzidas no Brasil pelo Butantan e pela Fiocruz. O que me preocupa com relação a esses atrasos em obras importantes é o impacto a longo prazo na nossa autonomia (para produzir insumos) — afirmou.

• Após 16 anos e gastos de R$ 1,2 bi, terreno para a maior fábrica de vacinas do país, na Zona Oeste do Rio, ainda é só mato — Foto: Gabriel de Paiva

 

Já o economista André Luiz Marques, especialista em gestão pública do Insper, classificou a demora do projeto como “inaceitável”:

 

— Houve um dinheiro investido que não gerou aquilo que se propunha. É um péssimo uso do dinheiro público. E ainda há risco de obsolescência dos equipamentos.

 

Há 11 anos, quando começaram as obras de terraplenagem, o projeto ainda era conhecido como o Novo Centro de Processamento Final (NCPFI). Em 2020, durante a pandemia de Covid-19, o empreendimento foi relançado e rebatizado de Complexo Industrial de Biotecnologia em Saúde (Cibs) já no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Na época, a previsão era inaugurá-lo em 2023.

 

Investidores privados

 

Em 2021, a Fiocruz bateu o martelo: iria concluir o projeto adotando uma alternativa que já havia sido estudada antes. Sem verbas do Tesouro, a instituição optou pela modalidade “built to suit” (BTS) — em que o governo contrata uma empresa para construir um empreendimento e paga o serviço por meio de um “aluguel”. Pelo modelo, a Fiocruz seria temporariamente uma “inquilina’’ do imóvel, fazendo repasses mensais, até ser totalmente dona da fábrica.

 

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O contrato foi assinado em novembro do mesmo ano. Apenas o Consórcio NCPFI-RJ (GRT Partners Capital e Participações Ltda, Lineal Participações S/A e AF FIT Construções e Comércio Ltda) foi habilitado. Pela proposta, a Fiocruz pagaria R$ 50,8 milhões por mês, após um período de carência. Ao fim do contrato, teriam sido desembolsados R$ 9,7 bilhões pelo investimento, de acordo com cálculos do TCU. Mas os planos não saíram como planejado: “Não houve execução contratual, por conta das dificuldades do consórcio contratado em captar recursos privados para financiar a operação’’, relataram os auditores.

Por conta do entrave, a fundação apresentou uma nova proposta no fim de 2024, mantendo a parceria com a iniciativa privada. A ideia mais recente é fazer um aporte inicial no fundo do NCPFI-RJ no valor de R$ 1,2 bilhão, para tentar atrair outros investidores. Os recursos viriam do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Este modelo ainda está sob análise do TCU.

 

— Estamos discutindo com o Ministério da Saúde, com o BNDES, com a própria Casa Civil, se seguimos no modelo atual ou se (o projeto) passará para o orçamento do governo — acrescentou o presidente da Fiocruz.

 

Já o Ministério da Saúde confirmou que busca junto ao TCU um ‘‘modelo para viabilizar a realização do empreendimento”, mas não quis comentar os atrasos até agora. Procurado, o Consórcio NCPFI-RJ não deu retorno.

 

Um projeto emperrado, mostra TCU

 

• 2014 Fiocruz finaliza a compra do terreno da prefeitura, após iniciar o projeto em 2009. Começam a terraplenagem e a aquisição de equipamentos para a fábrica.

 

• 2016 TCU identifica pagamentos indevidos e execução de etapas sem definição do modelo final. Há recomendação para reavaliar se o BTS é viável.

 

• 2017 Nova auditoria do TCU aponta falhas no projeto, falta de viabilidade econômica e aquisição antecipada de equipamentos. O tribunal pede paralisação das obras.

 

• 2018 TCU ratifica falhas na contratação de uma fundação pela Fiocruz (Fiotec) para viabilizar o projeto. Apesar disso, a Fiocruz realiza consulta pública e avança com a modelagem BTS.

 

• 2019 O TCU identifica riscos no modelo de financiamento e na definição do aluguel. A licitação está em fase interna, e o tribunal exige da Fiocruz um orçamento detalhado.

 

• 2021 Em fevereiro, é publicado o edital da licitação no modelo BTS. O consórcio NCPFI-RJ, formado por três empresas, vence. O contrato é assinado em agosto.

 

• 2022 Mesmo com o contrato firmado, as obras não começam. O consórcio alega dificuldades para captar recursos privados. E a Fiocruz busca alternativas de recursos.

 

• 2023 A Fiocruz propõe o aporte de R$ 1,2 bilhão de recursos públicos, via Fiotec, para adquirir cotas do fundo imobiliário que financiaria a obra.

 

• 2024 O empreendimento volta a ser auditado pelo TCU, que confirma: passados dois anos do contrato e do edital no formato BTS, a obra segue parada.

 

• 2025 Por conta do impasse, a Fiocruz apresentou uma nova proposta que segue em análise do TCU e do Ministério da Saúde para viabilizar o financiamento do projeto.

Fonte: O Globo

Post Author: Ryan Jatahy

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