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Tradição gaúcha: a lenda do João-de-Barro

Nos Campos de Cima da Serra, as fazendas eram compostas da casa grande, galpão, mangueiras e, no mais dos caprichos, as instalações para as lides com o gado. Entre as instalações principais e o galpão ficava um lugar chamado “cozinha de chão”. No centro, um círculo rodeado com pedras e tijolos. O fogo sempre aceso mantinha a chaleira preta com a água para o chimarrão.

Era ali que o Tio Picurra, peão encarregado das tarefas mais rudes, gostava de ficar. Abancado em um cepo lustro pelo uso, gostava de prosear interrompendo a conversa vez por outra para o gole ou uma baforada no “paieiro”, sempre pronto e à espera. Eu, piazito e curioso, sempre aguardava atento para ouvir os causos que ele narrava. Tio Picurra caprichava nos ditos:

– Pois sabes, menino – começava ele.

Dizem que entre os índios a união para o casamento representava sério compromisso. Submetiam-se a várias provas, e somente quando saiam vencedores é que se tornavam merecedores da jovem a quem pretendiam desposar.

Jaebé, filho de antigo caçador, submeteu-se a diversos desafios a fim de conquistar a índia por quem morria de amores. Saindo vitorioso até aqui, candidatou-se para os demais conquistando resultados positivos. Faltava agora o final e o mais difícil. Nove dias em jejum foi o estabelecido pelos juízes, velhos e experientes, todos sentados à roda de uma fogueira bem ao centro do terreiro. Para facilitar o julgamento, envolveram o corpo do jovem pretendente num forte manto de couro.

Parecendo morto, imóvel deixaram-no ali. Guardas se revezavam ao seu redor para que ele não procurasse descumprir o regulamento da prova. Outros que tentaram jejuar por este tempo tinham morrido de inanição.

Vencido o prazo, os julgadores se reuniram para abrir o invólucro. Vivo, Jaebé surge em suas presenças apresentando grandes mudanças. Em contato com o ar livre, foi se transformando aos poucos, até tomar forma de pássaro. Era um hogaraitai, a quem os brancos chamam de joão-de-barro, o símbolo da vida doméstica. Neste ponto Tio Picurra interrompe a fala para mais um gole e mais uma baforada. Não resisto a espera…

– E aí, Tio? – pergunto.

– E aí, menino… Ele, solto, voou pelos bosques a gritar: “Sou filho dos bosques e canto o hino do trabalho.”

Neste instante, sua noiva também se transformou em pássaro e acompanhou-o pelos ares, com gritos de alegria. Dando por terminada a prosa, Tio Picurra levanta dirigindo-se rumo à porta meio aberta. Por ali, enxergo em um palanque da mangueira um joão-de-barro, talvez o próprio Jaebé.

Esta é uma adaptação da lenda publicada por Barbosa Lessa em Histórias e Lendas do Rio Grande do Sul, de 1960. O conto foi adaptado por Luiz Carlos de Lucena para o projeto 7 lendas gaúchas, do Clic RBS.

O João-de-barro é uma das espécies mais populares do Brasil, especialmente no Sul do país. O nome do bicho se dá por suas grandes habilidades em manipular o barro, que misturado a esterco, palha e pequenos galhos, servem para que o macho e a fêmea trabalhem juntos por 18 dias para a construção do ninho.

Além da famosa lenda gaúcha, muitos mitos giram em torno do João-de-barro, como por exemplo, a história que, se o macho for “traído” pela fêmea, ele pode trancá-la dentro do ninho para sempre como punição. Isso não é comprovado cientificamente, mas a lenda se espalha pelo Brasil.

Outro mito a cerca do passarinho, é de que essas aves não trabalham aos domingos, o que também não é verdade, pois o trabalho de construção do ninho demanda uma dedicação de quase um mês para que as estruturas estejam prontas e perfeitas para a moradia.

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