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Qual a importância da pecuária e seu impacto no planeta?

 

Por: Angela Escosteguy, Méd. Vet. especializada em Pecuária Orgânica, 

Diretora do Instituto do Bem-Estar (IBEM) e Coordenadora da Comissão de Pecuária Orgânica do CRMV/RS.

 

 

A insegurança alimentar, as mudanças climáticas e a perda da biodiversidade fazem parte dos grandes desafios para o desenvolvimento sustentável da humanidade. Estamos numa época de muitos questionamentos sobre as criações de animais, seus impactos e sua importância para a sobrevivência da humanidade no planeta.

Já faz alguns anos que a pecuária vem sendo acusada de causar inúmeros problemas e observamos uma narrativa crescente  para que ela seja,  no mínimo, bastante limitada. Nós,  profissionais da área, devemos nos informar e saber o que é verdadeiro sobre o que está sendo dito e deve ser corrigido e o que é exagerado e deve ser contestado. Hoje vamos examinar a importância e a evolução da pecuária para a humanidade e seu impacto no ambiente e na sociedade nos diferentes sistemas de criação. Em tempos de tantas acusações e incertezas, espero que este texto traga luzes e nos auxilie a tomarmos boas decisões visando o melhor futuro para todos.

 

 

DESAFIOS NO PLANETA TERRA

 

Alimentar de forma sustentável uma população que deve atingir cerca de 10 bilhões até 2050 é uma das questões mais importantes que a humanidade enfrenta hoje. Precisa produzir alimentos mantendo os ciclos essenciais para a manutenção da vida: água pura, oxigênio, clima equilibrado e a biodiversidade. O sistema agropecuário global vai precisar se ajustar para alimentar uma população crescente e, ao mesmo tempo, combater o desmatamento e as mudanças climáticas. Além disso,  também temos questões sociais. Sabemos que o mundo produz  comida suficiente e que a fome não é decorrente da falta de alimentos, masda falta de poder aquisitivo para ter acesso aos alimentos. E um bom exemplo disso é o Brasil, um dos maiores produtores e exportadores de alimentos do mundo com mais de 30 milhões de pessoas em situação de fome, segundo a Rede PENSSAN (2022). Por isso, não adianta aumentar a produção a qualquer custo, precisamos de sistemas produtivos que, além de baixo impacto ambiental, tenham custo acessível.

Em relação ao impacto, é claro que toda produção de alimentos, seja de origem vegetal ou animal, gera uma alteração no ambiente, que pode ser positiva ou negativa dependendo do sistema produtivo empregado. As criações de animais para produção de alimentos vêm sendo acusadas de causar inúmeros problemas, em especial aquecimento global, desmatamento e empobrecimento do solo, além de sofrimento animal. Aumentam cada vez mais as campanhas para diminuir consumo de alimentos de origem animal e substituir por alimentos de base vegetal e, mais recentemente, por alimentos ultraprocessados como as células cultivadas em laboratório. Vamos examinar estas questões em detalhes.

 

 

IMPORTÂNCIA E IMPACTO DA PECUÁRIA NO MUNDO

 

Os herbívoros fazem parte dos ecossistemas que habitam neste planeta há 25 milhões de anos, em grandes rebanhos nos diversos continentes, tais como bisontes na América do Norte, gnus e elefantes na África, veados na Grande Bretanha. Desde então cumprem suas funções de reciclagem da biomassa, fertilização do solo e múltiplos serviços ecossistêmicos, sendo, por isso, fundamentais para a manutenção da biodiversidade dos biomas e da vida silvestre.

 

Calcula-se que a partir do ano  8.000 AC, foi iniciada uma aproximação entre humanos e animais. Esta parceria é longa por ser proveitosa para ambos: em troca de abrigo, proteção dos predadores, alimentação e cuidados médicos, os animais  fornecem alimentos de alta qualidade nutricional como carne, leite, ovos, além de couro, lã, peles, penas, fertilizantes, energia, força de trabalho, transporte e diversão. Alguns estudiosos, inclusive, afirmam que o desenvolvimento cerebral dos humanos ocorreu quando eles passaram a ingerir carne, que contém nutrientes que favoreceram o desenvolvimento do cérebro (GUPATA, 2016).

Além disso, do ponto de vista social, a simbiose é tão intensa e proveitosa para nós que a FAO afirma que atualmente a pecuária é a principal fonte de renda para 200 milhões de famílias de pequenos produtores na Ásia, África e América Latina e única fonte de renda para 20 milhões de famílias no mundo,número que seria o dobro se considerar também os médio produtores. Ainda, afirma que 18% da população mundial depende da pecuária para sobreviver,  pois ela fornece proteínas e micronutrientes para 800 milhões de pessoas subnutridas e, se bem conduzida, ajuda a combater a mudança climática(FAO, 2023).

AQUECIMENTO GLOBAL E GASES DE EFEITO ESTUFA

 

A principal acusação que a pecuária recebe é ser a grande responsável pelo aquecimento global, provocado pela emissão de metano resultante da digestão da celulose pelos ruminantes. Vamos examinar esta questão.  São três os principais gases que provocam efeito estufa: gás carbônico, metano e óxido nitroso.  Estudos da Our World in Data (2020) mostram  que a agropecuária representa cerca de 18% da produção desses gases. Sendo que nestes 18% da agricultura, estão as partes vegetal e animal juntas. Sabemos que, além do metano produzido pelo gado, temos  também o óxido nitroso, produzido pelo uso de fertilizantes químicos que, inclusive, tem muito maior poder de aquecimento e dura muito mais tempo no ambiente que o metano liberado pelos animais.

 

 

O CO2 é o gás que tem maior contribuição para o aquecimento global, pois representa mais de 70% das emissões de GEE e o seu tempo de permanência é de, no mínimo, cem anos, resultando em impactos no clima ao longo de séculos. A quantidade de metano emitida para a atmosfera é bem menor, mas seu potencial de aquecimento é vinte vezes superior ao do gás carbônico. No caso do óxido nitroso e dos clorofluorcarbonos suas concentrações na atmosfera são menores, mas o seu poder de reter calor é de 310 a 7.100 vezes maior do que do que o CO2 (WWF/2023).

Em 2021, as emissões de GEE de solos no Brasil atingiram cerca de 179 milhões de toneladas de dióxido de carbono, das quais 49% foram emissões de óxido nitroso provenientes do uso de esterco e fertilizantes sintéticos, segundo o Observatório do Clima. O adubo nitrogenado se transforma em óxido nitroso e tem potencial de aquecimento 264 vezes maior que o CO₂, além de permanecer na atmosfera por mais de cem anos. Ainda, sua emissão é a que mais desgasta a camada de ozônio. As emissões de N₂O geradas pelos fertilizantes à base de nitrogênio atingiram 37,5 milhões de toneladas de CO₂ equivalente no Brasil em 2021 (Dialogochino,2023). Portanto, o metano gerado pelo gado causa muito menor impacto no aquecimento global que o uso de fertilizantes químicos usados na produção de vegetais.

Outro ponto interessante é abordado por THOMPSON : “Com base na lógica ecológica da circularidade da biomassa, as emissões correspondentes não podem ser atribuídas apenas à produção pecuária. Eles também seriam gerados pela biomassa não comestível de vegetais de ocorrência inevitável que é deixada para apodrecer”.

GADO EM PASTAGEM COMO ARMAZENADOR DE CARBONO 

 

 

Vejamos como o carbono circula entre os vegetais, o gado e o ar. As plantas, para realizar a fotossíntese, capturam o CO2 que está na atmosfera. O gado ingere a pastagem e digera celulose, liberando o metano, que em cerca de 10 anos se degrada em CO2 e volta a ser capturado pelos vegetais para a fotossíntese. Portanto, seu efeito a longo prazo para o aquecimento global é limitado. Assim, o gado faz  parte deste ciclo do carbono e não emite carbono extra na atmosfera, como ocorre na queima de combustíveis fósseis, derivados do petróleo que estava no fundo da Terra.

 

 

 

Deste modo, as pastagens, assim como as florestas, têm a capacidade de capturar e estocar carbono. Por isso, o gado criado em pastagens bem manejadas tem saldo final de captura de carbono, pois o carbono que é absorvido pelas pastagens supera o que é liberado pelo gado. Mas isto só ocorre se o gado for criado em pastagens ou florestas. Aliás, isto explica o vídeo produzido pela Agência Espacial Europeia que evidenciou países com acúmulo de metano na sua atmosfera, e o Brasil, com rebanho de mais de 200 milhões de bovinos, aparece sem acúmulo de metano. Isto porque a maior parte dos nossos rebanhos são criados em pastagens.

 

      Vídeo disponível em : https://youtu.be/yRqnfe0hwks

A FAO – Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura vem se manifestando bastante sobre este tema. Em publicação de 2019 já afirmava que, embora o gado represente um contribuinte significativo para as emissões de GEE , o setor pecuário tem o potencial de reduzir as emissões do setor por meio do sequestro de carbono do solo em pastagens.  E recentemente, em fevereiro deste ano (2023), nova publicação da  FAO afirma que: “Melhores práticas de manejo em pastagens, usadas especialmente para animais de pasto, podem aumentar a capacidade dos solos de atuar como sumidouros de carbono e ajudar os países a atingir suas metas climáticas’. O texto também afirma  “Depois dos oceanos, os solos representam o segundo maior reservatório de carbono da Terra e desempenham um papel importante nas mudanças climáticas globais devido à grande quantidade de carbono que atualmente armazenam em sua matéria orgânica.” Para ThanawatTiensin, Diretor da Divisão de Produção e Saúde Animal da FAO, “Avaliar o estado atual dos sistemas de pastagens e seu potencial de sequestro de carbono no solo é fundamental para entender melhor os benefícios dos serviços das pastagens do gado para segurança alimentar, conservação da biodiversidade e mitigação das mudanças climáticas”.

Portanto, é importante entender que as críticas não devem ser dirigidas aos animais, e sim aos sistemas de produção utilizados. Gado criado em confinamentos, alimentados a base de grãos, embora  liberem menos metano na digestão, têm saldo final de liberação de carbono pois não estão em pastagens que poderiam capturar o carbono.Além disso, os grãos utilizados para alimentação são cultivados com uso de insumos derivados do petróleo, tais como fertilizantes nitrogenados, que produzem o óxido nitroso e ainda são transportados por longas distâncias,com a queima de combustíveis fósseis, além da liberação de metano pelo acúmulo de dejetos.

SISTEMAS DE CRIAÇÃO DE ANIMAIS E IMPACTO NO AMBIENTE

                                                      

Por vários motivos o gado criado em pastagens bem manejadas traz muitos benefícios ao ambiente e à humanidade. A América Latina, e em especial o Brasil, tem enorme potencial para criação de animais de produção de alimentos e contribuição para segurança alimentar mundial por ter extensas áreas, abundância de água e clima ameno, além de mão de obra rural.

Atualmente, grande parte da discussão sobre o impacto da pecuária no meio ambiente se concentra na produção de metano, numa abordagem parcial do conjunto de interações que ocorrem e dos diversos e importantes serviços ecossistêmicos proporcionados pelos herbívoros na natureza. São eles:

 

– Preservação dos biomas e suas  biodiversidades vegetal e animal (incluindo os polinizadores, que vêm sendo dizimados principalmente pelo avanço das monoculturas vegetais);

 

– Fertilização do solo pelo dejetos, que ainda torna o solo mais poroso e, com isso, ocorre maior captação da água da chuva com consequente aumento do  abastecimento dos aquíferos;

 

– Melhor qualidade de vida e bem-estar dos animais criados ao ar livre, em rebanhos, em contato com ar puro e sol;

 

– Preservação dos diversos biomas com suas paisagens naturais com potencial turístico e de lazer;

 

E também, além dos benefícios ambientais, temos  os benefícios sociais de geração trabalho, renda e cultura e fixação das populações na zona rural, contribuindo para frear o aumento das grandes cidades, e, ainda, claro, a produção de alimentos de alto valor nutricional principalmente para crianças, como a carne e leite a partir de biomassa não comestível para nós.

Animais em pastagens são parte da solução, não do problema. Inclusive os herbívoros vêm sendo usados para recuperar áreas degradadas por Savory na África e EUA e Murgueitio, na Colombia. Sabemos que existem várias maneiras de criar os animais, com impactos no ambiente que podem ser positivos ou negativos. Tudo depende da maneira como os animais são criados. Portanto, os sistemas pecuários devem ser adequados e não suprimidos.

Assim, a medida que a compreensão de todo o contexto e importância dos herbívoros se aprofunda, avançam as iniciativas de  modelos de pecuária orgânica ou de base agroecológica com criações de animais soltos em pastagens e/ou em sistemas silvipastoris com benefícios múltiplos para o ambiente, preservação de espécies ameaçadas de extinção,  qualidade de vida dos animais e a qualidade dos alimentos produzidos, além dos aspectos sociais de geração de trabalho e renda para milhares de pessoas aqui e em vários países do mundo.

 

Escritora

Márcia Ximenes Nunes Chaiben

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