“Foi graças ao investimento em pesquisa, que começou há quase cinco décadas, que o Brasil pôde se tornar no que é hoje: protagonista mundial na produção de alimentos, com tecnologia, qualidade e sustentabilidade, referência sem precedente no mundo em agricultura tropical”.
Em entrevista exclusiva para o portal Agro Floresta Amazônia, o presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Celso Moretti, fala sobre as inovações tecnológicas em bioeconomia na Amazônia; expansão da agricultura, piscicultura e pecuária na região; desenvolvimento do processo industrial de produtos extrativistas como açaí e óleos vegetais; exportação da carne carbono neutro, primeira carne sustentável brasileira; investimentos do Governo Federal em pesquisas; e sobre o recente corte financeiro na empresa.
Portal Agro Floresta Amazônia – De que maneira se pode desenvolver o agronegócio na Amazônia sem agredir a floresta, mas produzir grãos, madeira manejada, pecuária de leite e de corte com sustentabilidade?
Presidente Celso Moretti – A ciência agropecuária já mostrou que é viável, técnica e economicamente, o uso sustentável dos recursos florestais da Amazônia Legal, incluindo a recuperação das áreas degradadas e a intensificação dos sistemas de produção agrícolas, pecuários e florestais nas áreas já desmatadas. A inovação tecnológica proporcionou expressivos aumentos na produtividade e na rentabilidade das cadeias produtivas da agricultura e pecuária na Amazônia Legal. Em quase cinco décadas, a Embrapa, por meio dos seus centros de pesquisa, disponibilizou soluções e contribuições sustentáveis para os noves estados da região, que foram adotadas em mais de um milhão de hectares, gerando benefícios anuais de R$ 945 milhões na Amazônia. Destaco aqui tanto tecnologias de manejo florestal de produtos não madeireiros (como açaí e castanha-do-brasil, por exemplo) quanto de madeireiros, que asseguram o uso sustentável de mais de 100 mil hectares de vegetação nativa e geram emprego e melhoram a renda de dezenas de milhares de famílias. Por isso mesmo é que costumo afirmar que a melhoria dos indicadores sociais e econômicos na Amazônia Legal tem vinculação direta com os investimentos públicos em saúde, ciência, educação e infraestrutura.
2) Como a bioeconomia da Amazônia pode influenciar uma nova cultura agrária na região mais rica em biodiversidade do planeta?
A economia de base biológica é uma das prioridades na agenda de pesquisa da Embrapa. Sem dúvida, representa uma oportunidade importante para que o Brasil se torne referência mundial na área. Atualmente, trabalhamos em dois níveis de atuação em bioeconomia. Um deles, centrado em sistemas agroflorestais para a produção de alimentos, e outro baseado em conhecimentos avançados em biotecnologia e genômica. Por isso, recentemente, está sendo preparado o Plano Embrapa de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação para a Bioeconomia no Bioma Amazônia, com o objetivo de fortalecer os sistemas agroalimentares e investir em novas pesquisas de ponta como bioinsumos voltados às áreas de energia, farmácia, controle de pragas, química de renováveis e biomateriais. Para se ter uma ideia das perspectivas que a ciência tem identificado, pesquisadores da Embrapa Amazônia Ocidental coordenaram uma expedição que percorreu 7 mil quilômetros pelos rios da bacia amazônica, para coletar microrganismos coletados de sedimentos. Foram identificadas bactérias e fungos com potencial biotecnológico que podem gerar moléculas para uso médico e agrícola ou para aplicação em processos industriais. Hoje, a Embrapa tem nove unidades de pesquisa na região, mais de 300 pesquisadores e cerca de 200 projetos em execução, além de um portfólio de pesquisa exclusivo, que inclui estudos para agregação de valor a produtos da biodiversidade amazônica; inserção de bioativos da Amazônia como insumo para produtos convencionais e bioprodutos de indústrias de bioeconomia; e aumento da escala, qualidade, regularidade e logística de matérias-primas da diversidade da Amazônia para o desenvolvimento de soluções tecnológicas voltadas às indústrias agroalimentares, agroquímicas, e de energias renováveis.
3) Como a piscicultura pode transformar o Brasil em uma potência neste setor, o que deve ser feito para alavancar esta área nacionalmente e, especialmente, na Amazônia?
A região amazônica apresenta grande potencial para expansão da aquicultura, sobretudo pela alta demanda regional por pescado, estimado em mais que o dobro da média nacional, de 11 kg/habitante/ano. A demanda por proteína animal de qualidade irá aumentar ainda mais com a perspectiva de chegarmos em 2050 aos 9,5 bilhões de habitantes. A sociedade vai buscar também no futuro alimentos mais saudáveis, como o pescado. Um dos maiores desafios para produção aquícola na Amazônia é a necessidade de tecnologias adaptadas para cada espécie. É onde entra a pesquisa, buscando soluções para esses problemas, desenvolvendo tecnologias, conhecimento, serviços. E depois entram as políticas públicas, nacionais ou regionais, fazendo com que esse conhecimento e essas soluções sejam de fato transformadas em inovação, sejam absorvidas pelo setor produtivo, pelos produtores. Como as espécies nativas se encontram em um estágio recente de domesticação, seu potencial genético precisa ser explorado por meio de programas de seleção e melhoramento genético, buscando o desenvolvimento de linhagens adaptadas aos diferentes sistemas de produção, resistentes a doenças e com melhor rendimento. Duas espécies de peixes estão na rota prioritária da pesquisa: o tambaqui e o pirarucu. Avançamos muito já na questão de alternativas para nutrição, com formulações diversas de ração. E estamos conseguindo destravar outro gargalo científico, que era o baixo conhecimento sobre a biologia reprodutiva dessas espécies. Uma ferramenta importante desenvolvida pela Embrapa foi o Tambaplus, único serviço de análise de pureza para detectar híbridos e de parentesco de matrizes de tambaqui ofertado ao setor produtivo no Brasil, permitindo o planejamento racional de cruzamentos e, consequentemente, a redução de perdas de produtividade. Por fim, para o fortalecimento da cadeia produtiva, são necessárias estratégias de rastreabilidade, que passam pelo credenciamento e fiscalização sanitária dos criadores, plantas de abate e pontos de distribuição e revenda.
4) De que forma os produtos extrativistas como açaí, óleos vegetais (como andiroba, copaíba, babaçu), as fibras malva e juta, o látex dos seringais, as frutas da floresta (como cupuaçu, murumuru), entre outros, podem se posicionar no mercado mundial, com auxilio governamental, considerando seus valores como genuinamente da floresta amazônica?
A bioeconomia utiliza inovações tecnológicas na aplicação de recursos biológicos e renováveis como esses que você citou em processos industriais para gerar atividade econômica circular e benefícios social e ambiental coletivos. São novas formas de produzir cosméticos, probióticos, bebidas, alimentos, vitaminas, produtos de limpeza, plásticos e embalagens, além de biocombustíveis. Mas para que essas inovações se tornem realidade será preciso estruturar políticas públicas para a exploração da biodiversidade, abrir novos mercados, modernizar biorrefinarias e elaborar programas de pesquisa fortes suportados por parcerias público-privadas e fundos públicos e privados como forma de fomento para o avanço da ciência e tecnologia. A bioeconomia é a área com maior potencial para reverter o grande paradoxo da região, marcada por abundância de recursos naturais e extrema pobreza das populações e comunidades. Existem vários resultados de sucesso em bioeconomia que nasceram da união entre os conhecimentos tradicional e científico em prol do desenvolvimento sustentável das populações amazônicas, como os que comprovam o potencial de microrganismos do guaranazeiro para agricultura e saúde humana e o do óleo da pimenta-de-macaco para controlar pragas. A Embrapa já possui forte expertise em pesquisas relacionadas à produção alimentar com espécies amazônicas, como açaí, andiroba, cacau, cupuaçu. Mas há necessidade de investir em pesquisas de ponta nas áreas de biotecnologia, nanotecnologia e bioinsumos, entre outras, voltadas à descoberta de novas moléculas para controle de pragas, biofertilização de solos e produção de cosméticos e produtos farmacêuticos, entre outras aplicações. A energia ainda é um problema na Amazônia e precisamos reforçar ações também em busca de espécies que possam ser usadas para produção de biocombustível, de forma a reduzir a dependência de combustíveis oriundos de outras regiões.
5) Que pesquisas estão sendo feitas para a produção no bioma amazônico no âmbito da agricultura, piscicultura, pecuária, óleos vegetais e demais áreas do Agro na região amazônica?
Como falei antes, temos quase cinco décadas de atuação ininterrupta na Amazônia, com oferta de milhares de ativos tecnológicos para os diversos segmentos e cadeias produtivas da região, que vão desde técnicas de plantio, manejo e colheita de culturas, todas adaptadas para as diferentes realidades amazônicas; até o estabelecimento de sistemas de produção tipicamente amazônicos, como o manejo de açaizais, que é uma das tecnologias de maior impacto social e econômico para a população ribeirinha, extrativista do açaí. Sem falar nos primeiros clones e variedades de guaraná, cupuaçu, açaí, dendê, curauá e, lógico, o café robusta, totalmente adaptado para o clima e solo da região, que começou em Rondônia e hoje está chegando ao Amazonas e também ao norte do Mato Grosso. A rede de Integração Lavoura-Pecuária-Floresta também foi capaz de modelar sistemas integrados tipicamente amazônicos, utilizando espécies nativas de árvores e espaçamentos e manejos completamente adaptados para essa realidade. Existem modelagens também de agroflorestas, consorciação de culturas, manejo de solos, manejo de espécies florestais típicas deste bioma, completamente diferentes das aplicadas em outras regiões do país. É um acúmulo grande de conhecimento científico, que muitas vezes se alia ao conhecimento tradicional, como o uso do óleo essencial de manjericão-de-folha-larga, que se mostrou um insumo natural com grande potencial de controlar pragas nas lavouras; e o uso de vespas nativas para o controle da mosca das frutas. Em outras vezes, colabora para modificar uma prática cultural já arraigada e pouco sustentável, como o uso de fogo na agropecuária amazônica. Temos inúmeras alternativas tecnológicas para substituir o uso do fogo. E não podemos esquecer isso.
6) Como a Embrapa está trabalhando na pesquisa da Ecobiodiversidade amazônica?
Além das ações que já citamos anteriormente, é preciso deixar claro que nosso principal foco de atuação estará centrado no portfólio de projetos Amazônia, com dois desafios para inovação voltados à bioeconomia avançada. O primeiro visa a ampliar a inserção de bioativos amazônicos como insumo para produtos convencionais e bioprodutos de indústrias de bioeconomia, com foco nos setores agroquímico, cosmético, alimentício e de medicamentos. O outro desafio tem como objetivo aumentar escala, qualidade, regularidade e logística de matérias-primas da diversidade da Amazônia para o desenvolvimento de soluções tecnológicas voltadas às indústrias agroalimentares, agroquímicas e de energias renováveis, entre outras. Também será preciso maior esforço por parte da ciência para disponibilizar insumos com eficiência e de baixo custo, obtidos na própria natureza, considerando a ampla biodiversidade brasileira.
7) Recentemente, foi para o mercado o primeiro produto efetivamente sustentável da cadeia da carne. O produto é fruto de trabalho da Embrapa?
Sim. Trata-se da carne carbono neutro, uma certificação do gado criado em sistemas de integração do tipo silvipastoril (pecuária-floresta) ou agrossilvipastoril (lavoura-pecuária-floresta, ILPF). O lançamento desse conceito foi um marco importante para a agropecuária brasileira, com repercussão nas esferas políticas e produtivas nacionais e internacionais. A expectativa é a de que haja um benefício significativo para a pauta de exportações do Brasil, principalmente para o mercado europeu, que requer um padrão elevado de qualidade. É um produto que também pode garantir mais visibilidade à carne brasileira, promovendo a adoção dos sistemas integrados nas propriedades rurais. Para se ter uma ideia da importância dessa tecnologia, estudo realizado na Embrapa Gado de Corte (Campo Grande-MS) revela que cerca de 200 árvores por hectare seriam suficientes para neutralizar o metano emitido por 11 bovinos adultos por hectare ao ano, sendo que a taxa de lotação usual no Brasil é de um a 1,2 animais por hectare.
8) Que tipo de pesquisas a Embrapa tem desenvolvido em parceria com o Ministério da Agricultura e Universidades Federais?
A pauta de cooperações com universidades federais e o apoio a projetos do Ministério da Agricultura é extensa. Com o Ministério da Agricultura, a Embrapa tem contribuído com apoio à formulação de políticas públicas e projetos, a exemplo do Agronordeste, destinado a impulsionar o desenvolvimento econômico e social sustentável do meio rural da região. Nessa iniciativa, a Embrapa apoia na concepção das ações, na disponibilização das tecnologias aplicáveis às características e demandas do território. Também junto com o Mapa, podemos destacar o método do Zoneamento Agrícola de Risco Climático (ZARC), desenvolvido pela Embrapa e parceiros, que ajuda produtores a decidir o quê, como e quando plantar nas diferentes regiões do País, evitando perdas. É uma ferramenta importante de planejamento das atividades agrícolas. Atualmente, cerca de 80% das universidades brasileiras desenvolvem projetos em parceria com a Embrapa, por meio de cada uma das 43 unidades de pesquisa espalhadas pelo País. Um exemplo é a cooperação entre as unidades do Amapá e Roraima com as universidades estaduais, em pesquisas direcionadas à aquicultura e pesca, biodiversidade e agricultura familiar. A Universidade de São Paulo é a recordista em publicações conjuntas com a Embrapa.
9) Hoje, o Brasil investe, em média, algo em torno de 1,2% a 1,5% do PIB do agronegócio brasileiro em pesquisa de desenvolvimento e inovação. Somente na Embrapa foram investidos, nos últimos dois anos, um orçamento que gira em torno de R$ 3,5 bilhões. Quais os principais resultados desse investimento e qual a importância desse trabalho para o desenvolvimento do país?
O resultado do Balanço Social da Embrapa, além dos impactos sobre o dia a dia do agro nacional, responde bem a sua pergunta. No ano passado, para cada R$ 1,00 investido na empresa, foram devolvidos R$ 12,29 para a sociedade, ou seja, 12 vezes mais do que o que foi investido. O dado é obtido na relação entre o Lucro Social e a Receita Operacional Líquida da Embrapa durante o ano. Sobre os principais resultados, só no ano passado, podemos citar o sequenciamento do genoma do tambaqui, que possibilita a produção de alevinos de qualidade; a BRS Morena, primeira cultivar de gergelim com proteção concedida no Brasil; a nova cultivar de amendoim forrageiro, recomendada para o consórcio com gramíneas para intensificar a produção pecuária a pasto; a cultivar de soja BRS 5804, que alia precocidade e produtividade na região sul do país; sem contar o inoculante BiomaPhos, para adição de bactérias capazes de tornar solúvel e mobilizar o fósforo já presente no solo para cultivos de milho, soja e algodão. Temos mais de 950 projetos em andamento em 34 temas de relevância para o agro, como agricultura digital; de economia de base biológica; a intensificação sustentável e edição genômica. Foi graças ao investimento em pesquisa, que começou há quase 5 décadas, que o Brasil pôde se tornar no que é hoje: protagonista mundial na produção de alimentos, com tecnologia, qualidade e sustentabilidade, referência sem precedente no mundo em agricultura tropical.
10) Recentemente, o governo federal bloqueou R$ 240 milhões do orçamento do Ministério da Agricultura. Como a Embrapa será afetada? O que isso significa, na prática, em relação às pesquisas e inovações em andamento e de quanto será o corte no orçamento da Embrapa em 2021?
A importância do investimento em pesquisa, desenvolvimento e inovação agropecuária é reconhecida pelo Governo Federal, não só no que diz respeito à Embrapa, mas a todas as demais instituições que contribuem com o agro nacional, responsável por uma parcela significativa do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. No momento, existe uma tendência da área econômica, em todos os níveis da Administração Direta e Indireta, de enxugar orçamentos e priorizar o suporte e a estabilidade financeira do País. Ainda sim, entendemos que garantir recursos para que a ciência possa fazer a sua parte também é fundamental, por isso estamos fazendo articulações necessárias para que os bloqueios orçamentários sejam revertidos e não haja comprometimento da programação de P&D da Embrapa.
Priscilla Torres
Correspondente de Política em Brasília
Foto: Jorge Duarte (Embrapa) / reprodução